troquei todas as senhas

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pode não parecer nada demais,

mas romper essa película me demandou muita energia,

muito respirar fundo e dores deveras.

e é incrivelmente delicioso perceber o ‘clique’,

o momento em que o ‘chave vira’ no instante exato

em que o invólucro da paixão

se rompe.

troquei todas as senhas para poder me acessar.

numa conexão sem adjetivos eficazes

era o cheiro dela,
que fica sob os lençóis pela manhã
o som da voz ainda relaxada e rouca ao acordar,
nossas mãos se encontrando
numa conexão sem adjetivos eficazes

que me fazia cruzar as cidades,
os medos, os desesperos, os rios
todas as fases lunares
e eclipses solares

para eu me saber
e te sentir
além das cercanias das impermanências.

chocada com a transmissão em 4g

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eu tinha quatro anos, ainda me lembro. o cheiro da casa nova e aquela rua, um beco sem saída, do tamanho do mundo. morávamos na casa cinco. tia selma, na casa um. no meu imaginário, ela seria uma espécie de dona ou síndica daquela ruazinha da minha história.

é de lá, da minha infância, que tenho as memórias mais bonitas! a tão sonhada casa própria dos meus pais, a vida social entre os moradores das 5 casas: jantares nas calçadas, serestas, carimba no chão de terra, sombra da mangueira do sítio vizinho e aquela camaradagem, aquela amizade e confiança de ‘pode olhar as crianças pra mim enquanto vou resolver algo ali na rua?’

até os meus 12 anos éramos uma família! depois nos mudamos e passamos a ser visitas, ainda que com tanta intimidade.

lembrar de tia selma é sentir o gosto do caldo do feijão carioquinha, achar lindo o sotaque com tantos tês e dês cratense, me saber segura (e comportada) na casa dela.

ela, que virou sócia de minha mãe numa empreitada ousada em pleno mil novecentos e noventa. quando menstruei pela primeira vez, mamãe correu na casa da tia selma pra buscar um absorvente.

ela, mainha da cy, de júnior e eduardo. que me deixava brincar com o lolo, o cachorrinho mais querido da rua.

ontem tia selma partiu. covid e todas as suas implicações. todo um filme na minha cabeça. pai e mãe. praia e interior. feijão e farofa. roberto carlos. tio chico. som alto. Beatles na vitrola.

nesses tempos desesperadores de distanciamento social, acompanhar o velório e sepultamento através de uma ‘live‘ foi o paradoxo da existência. a todo momento eu só pensava na perversidade que há nesse vírus, onde um filho não pode ver, tocar, cheirar, chorar no corpo/colo da mãe.

‘a pessoa não pode se jogar em cima do caixão!’ me disse a minha irmã. e isso não é natural! o desesperar-se face ao fim.

ainda chocada com a transmissão em 4g, entre as gotas de chuva na câmera do celular, o cemitério e suas flores tristes, os trabalhadores funerários paramentados tal qual cosmonautas, o medo do porvir e a saudade sempre onipresente da mamãe, rezei junto aos demais expectadores a oração mais bonita e forte que me esforço para nunca esquecer:

a vida é um sopro.